Physiopunk Vol 1: Semeando ideias para mudar o mundo

SEMEANDO IDEIAS PARA MUDAR O MUNDO

Adriane Vieira, PT, PhD, Professora na UFRGS, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil.

Em muitos aspectos me encantou ler as diferentes histórias construídas e compartilhadas no projeto Physiopunk – Speculative fiction for future physiotherapies, desenvolvido junto aos alunos do curso de Fisioterapia da UiT Norges arktiske universitet. Além de incentivar os estudantes a pensar de forma mais ampla questões de saúde e sustentabilidade do planeta, o projeto é um incentivo à criatividade, à produção textual e à reflexão sobre o que esperamos do futuro e sobre qual é o nosso papel na promoção de um mundo melhor e mais saudável. 

A escrita é uma forma potente de germinarmos utopias e compartilharmos histórias. Ela nos encoraja a revisitar os caminhos trilhados, a olhar onde estamos e a semear novas ideias. Torna-se, portanto, um exercício significativo em tempos de incertezas, crises e perspectivas pouco promissoras. Airton Krenak (2020), líder indígena, ambientalista e escritor brasileiro diz que nunca devemos abrir mão dos nossos sonhos e que as histórias que contamos tem o poder de adiar o fim do mundo. Criar espaços que nos permitam sonhar com soluções otimistas para a crise que vivenciamos, além de renovar nossas esperanças, nos impulsiona a movermo-nos em direção a ações mais coletivas em prol de mundo melhor e mais equânime. 

Uma das ideias que me captou durante a leitura da história The Lungs of the World é a necessidade de estarmos mais atentos e abertos para apreendermos outras visões de mundo, resgatando os conhecimentos de povos indígenas e as riquezas nas suas formas de viver em meio às florestas. Como salienta Boaventura de Souza Santos (1995), é necessário cessar com o epistemicídio de conhecimentos, saberes e culturas que não foram assimilados pela cultura branca e ocidental, resgatando e resguardando saberes oriundos dos diversos povos que historicamente tem sido desvalorizados e excluídos da academia, assim como dos cenários políticos e dos espaços institucionais. Entendermos outras cosmologias e formas de compreender o mundo amplia nossa capacidade de produção e reprodução da vida e, mais especificamente no campo da saúde, pode contribuir para frear o processo de medicalização social e o consequente apagamento das diferentes formas de cuidados em saúde (Tesser, 2006). 

Em uma retrospectiva histórica, podemos dizer que a Fisioterapia pouco explorou temáticas relacionadas a questões ambientais e sociais na sua atuação e processo de formação profissional. Os fatores biológicos que embasam abordagens terapêuticas individualizadas direcionadas a disfunções orgânicas são ainda vistos como os elementos chaves na profissão (Condrade et al, 2010). Entretanto, assim como pontuado no texto introdutório em relação à Noruega, as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Fisioterapia no Brasil também já sinalizam, desde 2002, a necessidade de integração de conteúdos direcionados a um olhar ampliado para a saúde da população: 

“Cada profissional deve assegurar que sua prática seja realizada de forma integrada e contínua com as demais instâncias do sistema de saúde, sendo capaz de pensar criticamente, de analisar os problemas da sociedade e de procurar soluções para os mesmos. Os profissionais devem realizar seus serviços [...] tendo em conta que a responsabilidade da atenção à saúde não se encerra com o ato técnico, mas sim, com a resolução do problema de saúde, tanto em nível individual como coletivo.” (Brasil, 2002)

Algumas das imagens propostas no Urban health then and now, a reflection, em especial a dos corredores verdes e do barulho dos pequenos rios e riachos que voltam à superfície nas cidades me acompanharam por semanas enquanto eu caminhava pelas largas avenidas acinzentadas e lotadas de carros, imaginando quão diferente seria se as mudanças propostas por Nygård se tornassem realidade. O texto também me relembrou as discussões e as ações do movimento “cidades saudáveis” pautadas no Brasil no final dos anos 1990 (Adriano; Werneck; Santos; Souza, 2000; Keinert, 1997). Não sem resistências e com muitas limitações, esse movimento gerou políticas que contribuíram, por exemplo, para que hoje possamos circular por ciclovias, ampliando o espaço de lazer e as possibilidades de deslocamento na minha cidade. Pensar em estratégias que reorganizem e reorientem o espaço urbano e que sejam considerados relevantes pelas comunidades para o desenvolvimento humano são imprescindíveis para a promoção da saúde e do bem viver (Alcantara; Sampaio, 2017). Um movimento em que fisioterapeutas podem colaborar em vários sentidos tanto na construção de políticas públicas quanto na implementação de ações que promovam uma vida mais saudável e acessível nos espaços urbanos.

Da mesma maneira, a leitura de A diary from the future nos provoca a pensar em uma formação que nos prepare para atuar de forma abrangente no campo da saúde e não apenas no núcleo de saberes específicos do que hoje nomeamos como Fisioterapia. O interesse e o maior comprometimento em relação aos desafios de uma sociedade cada vez mais complexa e desigual, com um novo perfil epidemiológico e em um meio ambiente com evidente processo de deterioração se faz cada vez mais presente em publicações e discussões que vem questionando o papel da fisioterapia, a busca por novas perspectivas para a profissão e a integração de conhecimentos advindos de outras áreas do conhecimento. Essas discussões, em ressonância com algumas ideias apresentadas no diário de Eikrem, são um forte indicio de que as mudanças começam a ganhar forma e a ocupar um espaço na vida profissional e nos currículos acadêmicos. Vejo o projeto desenvolvido da UiT Norges arktiske universitet inserido dentro deste movimento promissor, em que novas estratégias pedagógicas e novas temáticas nos convidam e nos provocam a pensar e a agir diferentemente. 

Para finalizar, gostaria de agradecer imensamente o convite para comentar sobre este projeto. A leitura de cada uma das histórias me inspirou a me fez pensar no que está por vir. Como educadora, me sinto estimulada a também mobilizar meus alunos a expressarem suas ideias, contarem suas histórias e se permitirem vislumbrar possibilidades para construção de um mundo melhor. O futuro e um caminho a ser trilhado e acredito que as palavras e as ações coletivas tem o poder do moldar o porvir. O caminho pode ser longo, com intempéries e perdas, demandando paciência, articulação e determinação. Contudo, entendo que é tempo de acreditarmos que nossas ideias adiam o fim do mundo.

REFERENCES

Adriano, JR; Werneck, GAF; Santos; MA; Souza, RC. A construção de cidades saudáveis: uma estratégia viável para a melhoria da qualidade de vida? Ciência & Saúde Coletiva, 5(1):53-62, 2000.

Alcantara, LCS; Sampaio, CAC. Bem Viver como paradigma de desenvolvimento: utopia ou alternativa possível? Desenvolvimento e Meio Ambiente, 40: 231-251, 2017.

Brasil. Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Fisioterapia. Resolução CNE/CES nº 4, de 19 de fevereiro de 2002. 

Condrade, TVL et al. Humanização da saúde na formação de profissionais da fisioterapia. Revista Equilíbrio Corporal e Saúde, 2(2):25-35, 2010.

Keinert, TMM. Planejamento governamental e políticas públicas: a estratégia “cidades saudáveis”. Saúde e Sociedade, 6(2): 55-64, 1997. 

Krenak, A. Ideias para Adiar o Fim do Mundo. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

Santos, S. Boaventura. Pela Mão de Alice. São Paulo: Cortez Editora, 1995. 

Tesser, C. D. Social medicalization (I): the exaggerated success of modern ‘epistemicide’ in health. Interface – Comunicação, Saúde, Educ., 10(19):61-76,2006. 

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